HABEAS CORPUS - ABORTO TERAPÊUTICO - INSTRUMENTO PROCESSUAL PARA AUTORIZAR A INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ EM CASOS ANÁLOGOS A FETOS ANENCÉFALOS

 

 

Por: Paulo O'Dwyer e Isabel O'Dwyer

 

Sabemos que o tema de aborto é bem controvertido e com a emoção devida, as discussões em torno do tema são sempre muito polarizadas e radicais em suas as opiniões, eis que trata-se de uma vida e a escolha de sua continuidade.

 

No presente texto, trataremos de apenas um aspecto, técnico e processual, sem fazer análise de qualquer elemento religioso ou emocional.

 

Na nossa vida profissional, nos deparamos com situações que não são as melhores e nem muitas vezes as escolhidas, mas que uma vez confrontadas e decidido o seu patrocínio, ao advogado cabe a análise com racionalidade e alguma frieza, não sem antes consumir, pelo menos no nosso caso, um bocado de emoção e muitas lágrimas.

 

Passando ao aspecto técnico processual, como dito linhas acima, é que relembramos que o Supremo Tribunal Federal, em 12 de abril de 2012, julgou a Arguição de Descumprimento de Preceito Constitucional (ADPF) 54 e por maioria decidiu que as gestantes de fetos anencéfalos têm direito de interromper gravidez.

 

O Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou procedente o pedido contido na ADPF 54, ajuizada na Corte pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), para declarar a inconstitucionalidade de interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, todos do Código Penal. Ficaram vencidos os ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso, que julgaram a ADPF improcedente.

 

O Ministro Joaquim Barbosa entendeu que o feto anencéfalo, mesmo que biologicamente vivo, porque feito de células e tecidos vivos, é juridicamente morto, não gozando de proteção jurídica e principalmente de proteção jurídico-penal. Nesse contexto, a interrupção da gestação de feto anencefálico não configura crime contra a vida, revela-se conduta atípica.

 

O foco deste pequeno artigo está em saber se este entendimento a que chegou a mais alta corte de justiça do país, o Supremo Tribunal Federal, se aplica em situações análogas à anencefalia, ou seja, outras síndromes, e não são poucas as existentes na literatura médica e que, uma vez constada, levam a que se reconheça que a interrupção da gestação não configura crime contra a vida e revela-se conduta atípica, não pode ser considerado crime.

 

Veja que no dia a dia, são inúmeras as situações que se deparam os médicos e estabelecimentos hospitalares, já que pela simples interpretação da lei, a interrupção da gravidez em caso de inviabilidade da vida não estaria protegida.

 

Tivemos no nosso escritório algumas situações dessa, valendo relatar duas em que foram adotadas medidas judiciais e deferidas as respectivas ordens para que os envolvidos, gestantes, pais e corpo médico, ficassem protegidos juridicamente das sanções legais.

 

Nos casos referidos, uma liminar foi cumprida e foi feita a interrupção da gravidez em estado relativamente avançado, mais de quatro meses de gestação.

 

No outro caso, após o deferimento liminar, houve o recuo da gestante em fazer o aborto, preferindo levar até o final a gravidez, e pós duas horas do nascimento do bebê, este veio a óbito, confirmando a inviabilidade da vida atestada pelos médicos meses antes.

 

É cabível a interposição de HABEAS CORPUS PREVENTIVO COM PEDIDO DE LIMINAR com fulcro no artigo 5º, LXVIII e LXXVII da Constituição Federal e no artigo 647 do Código de Processo Penal, por se tratar da real ameaça de constrição à liberdade ambulatorial, caso a gestante venha interromper a gestação sem autorização judicial.

 

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em 2010, no HABAES CORPUS n° 990.10.046549-0/SP, assim entendeu:

 

“Primeiramente, cumpre esclarecer que "A via do habeas corpus é adequada para pleitear a interrupção de gravidez fora das hipóteses previstas no Código Penal (art. 128, incs. I e II), tendo em vista a real ameaça de constrição à liberdade ambulatorial, caso a gestante venha a interromper a gravidez sem autorização judicial." (STJ, HC 56572/SP, 5ª Turma, Min. Arnaldo Esteves Lima de 15.05.2006). Ainda, "Habeas Corpus que merece conhecimento em razão da necessária celeridade e também pelo risco à locomoção da paciente advindo de eventual prática do ato sem autorização." (STJ, Min. Felix Fischer de 03.02.2004). Assim, conhece-se da presente impetração. (TJPS - Habeas Corpus n° 990.10.046549-0 - Voto n° 1870, 16ª Câmara de Direito Criminal).

 

Desta forma, a concessão da ordem materializa-se em uma autorização judicial para interrupção da gestação da PACIENTE.

 

Sensível a essa convalescença social e o risco para saúde física e mental da gestante, é que os Tribunais brasileiros vêm admitindo que gestação de feto inviável é apontado como situação de hipótese de aborto terapêutico, por exemplo, é o que diz a inteligência do julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

 

“Diante da moléstia apontada no feto, que provavelmente lhe causará a morte (...), pode-se vislumbrar na continuação da gestação sério risco para a saúde mental (...) situação na hipótese de aborto terapêutico" (TJRS 2003/crime - apelação n° 70006088090 - relator desembargador Manuel José Martinez Lucas).”

 

O artigo 5º LXVIII da CF e o artigo 647 do CPP assegura a concessão de habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação a sua liberdade de locomoção.

 

No caso em tela, a possível punibilidade da PACIENTE em interromper a gestação advém da simples e crua aplicação da norma (artigo 128, I, II do CP), e cabe ao Estado garantir a dignidade humana e não expor a GESTANTE tamanha convalescença social.

 

Antes da análise dos fundamentos jurídicos do pleito, vale uma breve discussão sobre valores do bem jurídico em questão, isto é, uma ponderação entre o direito à vida e a dignidade da pessoa humana da gestante.

 

O direito à vida é fundamental, mas a gravidez que coloca em risco a vida da mulher é negligenciar a premissa desse direito, pois quando a vida extrauterina não tem viabilidade, possivelmente pode acarretar sérios riscos físicos, emocionais e psíquicos para a mulher, podendo causar-lhe risco de vida.

 

Como não se pode negligenciar o argumento de que o direito à vida é fundamental, a GESTANTE de feto com síndrome que inviabilize a vida tem muito mais a perder, isto porque a sobrevida da parturiente tem muito mais valor que a de um feto sem expectativa de vida fora do útero.

 

A não concessão da ordem dá a entender que o direito do nascituro tivesse o condão de excluir completamente a proteção dos demais direitos da gestante, ferindo um bem jurídico de um ser que já tem vida - o direito à vida da GESTANTE - em favor de um direito à vida de um feto que não tem expectativa de vida extrauterina, golpeando o princípio da proporcionalidade/razoabilidade e princípio da dignidade da pessoa humana.

 

Por isso que os diversos princípios agasalhados na CF não possuem aplicabilidade absoluta, sua interpretação é sistêmica por meio do sopesamento de valores.

 

Para acalmar essa vigorosa discussão sobre os direitos do feto e os direitos da gestante o STF, sensivelmente, no julgamento da referida ADPF 54/DF em 2012, entendeu sobre o anencéfalo o seguinte:

 

“Por ser absolutamente inviável, o anencéfalo não tem a expectativa nem é ou será titular do direito à vida, motivo pelo qual aludi, no início do voto, a um conflito apenas aparente entre direitos fundamentais. Em rigor, no outro lado da balança, em contraposição aos direitos da mulher, não se encontra o direito à vida ou à dignidade humana de quem está por vir, justamente porque não há ninguém por vir, não há viabilidade de vida.”

 

Assim, analogicamente, cabe ao Estado ponderar e que faça garantir a dignidade da pessoa humana da GESTANTE, pois por similitude não há por vir, um feto com viabilidade de vida extrauterina.

 

É cediço que o Código Penal nos incisos do artigo 128 não protege a hipótese de interrupção da gestação da grávida. Todavia, os valores sociais devem ser revelados e exauridos em sua plenitude para o cidadão e para a sociedade guiando decisões ajustadas na arte do bom senso.

 

Para garantir a dignidade da pessoa humana, em especial a dignidade da mulher, e mais específica a dignidade da gestante, os Tribunais têm atendido às solicitações de interrupção de gestação quando há uma malformação irreversível e incontornável no feto impossibilitando-o sobrevivência extrauterina, a exemplo do feto ANENCÉFALO, do feto com síndrome de PATAU, do feto com síndrome de POTTER, síndrome de EDWARDS e outros.

 

Destarte, a jurisprudência atual tem feito uma interpretação extensiva do artigo 128, I do CP, admitindo a exclusão da ilicitude do aborto não só quando é feito para salvar a vida da gestante, mas quando é necessário para preservar-lhe a saúde, inclusive psíquica, nos casos em que é inviável a vida extrauterina do feto.

 

Para reforçar a afirmação acima, o julgado do TJRS já em 2003, na Apelação n° 70006088090, autorizou, unanimamente, a interrupção da gravidez de feto com síndrome de PATAU, por exclusão da ilicitude do artigo 128, I do CP, no qual foi deferida por analogia "in bonam partem", na forma da ementa abaixo transcrita:

 

“PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ. FETO QUE APRESENTA SÍNDROME DE PATAU. DOCUMENTOS MÉDICOS COMPROBATÓRIOS. DIFÍCIL POSSIBILIDADE DE VIDA EXTRAUTERINA. NESSE CASO, OLIGOFRENIA ACENTUADA E FREQÜENTES CONVULSÕES. EXCLUSÃO DA ILICITUDE. APLICAÇÃO DO ART. 128, I, DO CP, POR ANALOGIA IN BONAM PARTEM. (TJRS 2003/crime - apelação n° 70006088090 - relator desembargador Manuel José Martinez Lucas).”

 

 

Sendo o atual Código Penal do ano de 1940, e em 1940 não existiam recursos técnicos que permitissem a detecção de malformações e outras anomalias fetais que causam a morte do nascituro como atualmente existe, logo, precisa-se de uma atualização do pensamento jurídico em torno do tema, no qual o referido código não poderia estar incluído o aborto eugênico entre as causas de exclusão de ilicitude do aborto, continua o supracitado acórdão na voz do relator que defende está modernização, a saber:

 

“....., impõe-se uma atualização do pensamento em torno da matéria, uma vez que o Direito não se esgota na lei, nem está estagnado no tempo, indiferente aos avanços tecnológicos e à evolução social.

Ademais, a jurisprudência atual tem feito uma interpretação extensiva do art. 128, I, daquele diploma, admitindo a exclusão da ilicitude do aborto, não só quando é feito para salvar a vida da gestante, mas quando é necessário para preservar-lhe a saúde, inclusive psíquica.

Diante da moléstia apontada no feto, que provavelmente lhe causará a morte (...), pode-se vislumbrar na continuação da gestação sério risco para a saúde mental da primeira apelante, o que inclui a situação na hipótese de aborto terapêutico previsto naquele dispositivo." (TJRS 2003/crime - apelação n° 70006088090 - relator desembargador Manuel José Martinez Lucas)”.

 

Também é significante adicionar que, na ADPF 54/DF em 2012 - que decidiu pela não tipicidade dos artigos 124, 126 e 128, I, II do CP de 1940 na conduta de interrupção de gestação de feto anencéfalo, o STF travou uma discussão sobre as patologias letais fetais, no qual trouxe outros exemplos de outras patologias presentes em outras doenças fetais, sendo inexorável a morte.

 

Portanto, em virtude do direito que cabe a GESTANTE, e sendo inúmeras as patologias que inviabilizam a vida e que podem ser detectadas muito antes do nascimento, com segurança, adicionado à posição do STF na APDF 54/DF, fica clara a possiblidade de utilização do HABEAS CORPUS preventivo para evitar constrangimentos à equipe médica e à GESTANTE, esta já em sofrimento com a inviabilidade da vida extrauterina que leva em seu ventre.